Direitos Violados

SOMBRAS DA ESCRAVIDÃO

Após mais de um século da chamada “Abolição da Escravatura”, para milhares de brasileiros, a linha ainda se mostra tênue entre trabalho digno e análogo à escravidão.

Por: Maria Lúcia Silva e Deisy Feitosa

Com colaboração de Eduardo Acquarone, Danilo de Freitas e Roger Romero

23/07/2023, às 8h

Matéria original publicada em: https://www.entrefocos.com/sombras-da-escravidao

A mácula da escravidão na história do Brasil

As sombras da escravidão continuam a assolar o Brasil, mesmo passados 135 anos da chamada Lei Áurea. O fato é que a prática nunca deixou de existir em sua essência, e até ganhou novas roupagens na contemporaneidade. Além do chamado trabalho análogo à escravidão doméstica, por exemplo, há também muitos casos relacionados à exploração de trabalhadores em áreas rurais, ligados à produção de commodities, como carvão, soja e algodão. Em 2022, 2.575 trabalhadores foram resgatados; e de janeiro a 14 de junho deste ano, 1.443. Além disso, nos últimos anos, registrou-se o envolvimento de grandes empresas com esse tipo de irregularidade, tais como Zara, M-Officer, Brooksfield Dona, Renner, Marisa, Pernambucanas e Gregory .
Das 2575 pessoas resgatadas em situação análoga à escravidão, em 2022, de acordo com a Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do  Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), a maioria se autodeclararam negras: sendo 83% dos homens. Já 61,66% das mulheres resgatadas se autodeclararam pardas, mulatas, caboclas, cafuzas, mamelucas ou mestiças. Inclusive, a região Nordeste teve o maior número de resgates: 51%, e 58% dos trabalhadores eram naturais da região. O mesmo relatório também registrou que foram resgatados 148 trabalhadores migrantes de outros países, incluindo paraguaios, bolivianos, venezuelanos,  haitianos e argentinos. O trabalho análogo à escravidão infantil também foi registrado: 35 crianças e adolescentes foram encontrados em atividades agrícolas, criação de bovinos, fabricação de produtos de madeira e carvão vegetal e confecção de roupas. Do total, 10 eram menores de 16 anos e 25 tinham entre 16 e 18 anos.
A procuradora Andréa Tertuliano de Oliveira, do Ministério Público do Trabalho (MPT), também coordenadora do Núcleo de Combate ao Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas (NETP) da 2ª Região, cita alguns obstáculos enfrentados tanto em áreas rurais como em áreas urbanas, em ações contra o trabalho análogo à escravidão, que dificultam a identificação e a erradicação dessa prática, como a falta de acesso à comunicação e dificuldade de acesso a áreas remotas, onde o trabalhador está, e a pulverização das oficinas de costura. “A estimativa é de que apenas no município de São Paulo existam cerca de 40.000 dessas oficinas camufladas entre as casas”, revela.

Além disso, segundo a procuradora, a necessidade de autorização judicial para ingressar nessas residências particulares representa um obstáculo adicional para a fiscalização adequada. “Essa pulverização dos locais de trabalho dificulta a identificação de condições de trabalho degradantes e a aplicação de medidas corretivas. Diante desses desafios, é fundamental fortalecer os mecanismos de combate ao trabalho análogo à escravidão, investindo em estratégias que ampliem a capacidade de identificação e fiscalização. Além disso, a conscientização e denúncia da sociedade são essenciais para combater essa prática abominável”.

O Brasil foi o último país de todo o Ocidente a abolir, de forma oficial, a escravidão. Promulgada em 13 de maio de 1988, a Lei Áurea foi assinada pela Princesa Isabel, filha do imperador D. Pedro II. O feito concedeu à soberana os louros de heroína da pátria. Mas esse marco tem sido questionado por muitos historiadores, já que, conforme registros, a abolição não ocorreu do dia para a noite. Neste período, quase não existiam mais pessoas nessas condições, por diversas leis instituídas anteriormente, como a Lei do Ventre Livre e a Lei dos Sexagenários, pelo fato de pessoas comprarem a própria liberdade e pela ação de abolicionistas negros revolucionários.
Além disso, a monarquia também é questionada pelo fato de não ter planejado o futuro desses trabalhadores no período pós-abolição, como enfatiza a professora Antonia Aparecida Quintão, historiadora e presidente do Geledés, Instituto da Mulher Negra: “Ao contrário do que ainda hoje a gente encontra em livros didáticos, a Lei Áurea não libertou da escravidão, muito pelo contrário, a gente costuma dizer que condenou e abandonou a população negra à sua própria sorte, porque é composta só de dois artigos: ‘É extinta a escravidão no Brasil’ e ‘Revogam as disposições em contrário’, ponto final”.

Segundo a historiadora, mesmo após séculos de exploração, além de não terem sido traçadas estratégias para sobrevivência dessas pessoas, ainda foi aprovada a chamada Lei da Vadiagem, em 1890. “Sem trabalho, como é que você vai garantir o sucesso da sua família? E o que aconteceu na pós-abolição foi que criaram leis que cada vez mais prejudicavam e excluíam a população negra. Por exemplo, com a Lei da Vadiagem, quem seria qualificado como uma pessoa em situação de vadiagem? Aquele que não trabalhava. E quem não trabalhava no Brasil no período da abolição? A população negra. Mas é por que não queria? Não, porque eles eram preteridos no mercado de trabalho, como são até hoje”, observa.

A fala de Quintão pode ser, inclusive, evidenciada pela última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), divulgada pelo IBGE, em agosto de 2022, ao indicar que quase dois terços dos desempregados (64,7%) eram pessoas pretas ou pardas. “O que nós temos é a permanência de uma política que colocou a população negra numa situação de vulnerabilidade da qual até hoje a gente ainda não conseguiu superar”.

O ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, chegou a apontar que desconfia que a ampliação da terceirização, com a reforma trabalhista, pode ter contribuído para o cenário, por isso sugeriu revisões na legislação trabalhista, além de campanhas de conscientização voltadas a empresas que terceirizam.

Vale dizer que a lista de empregadores flagrados por submeterem os seus trabalhadores a situações de trabalho precário, consideradas análoga à escravidão, é atualizada constantemente pelo Ministério do Trabalho e Emprego e pode ser acompanhada no site GOV.BR. A publicação, também chamada de “lista suja”, é prevista pelo artigo 2º, da Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH nº 4, de 11 de maio de 2016, como uma forma de dar visibilidade às infrações nesse âmbito e de responsabilizar os envolvidos. A última atualização do cadastro monitorada por esta equipe de reportagem foi realizada em 13 de junho de 2023, e registrava um total de 284 empregadores, dentre eles pessoas físicas e jurídicas flagradas pela Inspeção do Trabalho.

Apesar de grande parte dos resgates serem realizados na zona rural, Roque Pattussi, da ONG Cami (Centro de Apoio e Pastoral do Imigrante), que se dedica a causas relacionadas a migrantes, refugiados, apátridas e tráfico de pessoas, lembra que eles também ocorrem com frequência em áreas urbanas e podem afetar pessoas de diferentes nacionalidades e perfis socioeconômicos. “O tráfico de pessoas e o trabalho escravo estão presentes no mundo inteiro, não só no Brasil ou em alguma região do nosso país. Quem pode ser vítima? Qualquer um. Nós temos diversas vítimas que foram acolhidas, como jornalistas, por exemplo, pessoas qualificadas e que têm conhecimento das informações caíram na rede do tráfico de pessoas, assim como tivemos médicos, dentistas. Então, não é somente uma pessoa pobre, em uma situação de vulnerabilidade, pode ser qualquer um”, alerta.

Antonia Aparecida Quintão
“Quem seria qualificado como uma pessoa em situação de vadiagem? Aquele que não trabalhava. E quem não trabalhava no Brasil no período da abolição? A população negra. Mas é por que não queria? Não, porque eles eram preteridos no mercado de trabalho, como são até hoje.”

Trabalho Escravo ou Trabalho Análogo à Escravidão?
Os termos trabalho escravo e trabalho análogo à escravidão, apesar de terem algumas semelhanças, possuem características diferentes, conforme legisladores e agentes da justiça. De acordo com o advogado Miguel Benavides, que presta serviços à ONG Cami, enquanto no Brasil colônia-império a prática da escravidão era permitida e “envolvia castigos físicos e tortura”, hoje essa forma de exploração é proibida e considerada crime pelo Código Penal Brasileiro, mas isso não impediu que se praticasse a escravidão de uma forma diferente, por isso a nomenclatura “trabalho análogo à escravidão”. Assim, o termo é utilizado para descrever situações em que pessoas são submetidas a condições de trabalho degradantes, como jornadas exaustivas, falta de remuneração adequada, restrição de liberdade e violações de direitos humanos.

“É importante ressaltar que, nos dias de hoje, ter um trabalhador nas ‘condições de escravizado’ tem custo baixo, porque não há compra. O patrão normalmente gasta apenas com o transporte do trabalhador aliciado até o local de trabalho. A mão de obra de um trabalhador é descartável, pois a falta de trabalho faz com que os cidadãos desempregados em busca de um serviço aceitem qualquer valor irrisório, e terminam caindo em mãos dos aliciadores, também conhecidos como ‘gatos’, que são pessoas que traficam pessoas”, analisa Benavides. “O relacionamento entre o patrão e o trabalhador escravizado é curtíssimo. Depois que o serviço acaba, o trabalhador vítima de trabalho forçado é mandado embora sem receber nada ou é morto, para que não possa denunciar o antigo patrão e entrar na justiça em busca dos seus direitos”. O advogado observa que, em geral, os trabalhadores aliciados costumam ser pessoas pobres e, para os aliciadores, pouco importa a cor, a raça e nacionalidade, pois ter condições físicas para trabalhar é o único fator importante.

Segundo a procuradora Andréa Tertuliano de Oliveira, os termos “trabalho escravo contemporâneo” ou “trabalho análogo ao de escravo” são mais adequados aos nossos dias, pois refletem a situação em que a posse e a violência extrema não estão necessariamente presentes, mas existem formas de exploração degradantes. “Na realidade, é uma questão de nomenclatura, mas o trabalho escravo, como a gente imagina, é aquele de séculos atrás, em que a pessoa ficava sob posse e propriedade de outra pessoa”, observa. Ela ressalta que, embora a associação imediata ao trabalho escravo costume ser feita em relação às pessoas negras, trabalhadores de qualquer origem e mais vulneráveis economicamente podem ser vítimas dessa prática. “O trabalhador vítima dessas circunstâncias pode ser de qualquer nacionalidade, de qualquer sexo, de qualquer idade”.

Oliveira também cita o tráfico de pessoas como uma situação gravíssima relacionada aos direitos humanos, embora nem sempre tenha relação direta com trabalho análogo à escravidão, uma vez que o traficado pode apenas ser tomado como ‘repositor de órgãos’. “No caso do tráfico de pessoas para fim de transferência de tráfico de órgãos, a pessoa acaba sendo morta porque se tira rins, baço, fígado, pulmão, e a pessoa morre evidentemente, porque não dá para viver sem esses órgãos”.

​O historiador Antônio de Almeida conseguiu demonstrar, durante a realização da sua pesquisa de doutorado em História Social, na PUC, a existência da prática do trabalho análogo à escravidão no Brasil, nas lavouras de cana de açúcar. Inclusive, no estado de São Paulo, um lugar que parecia improvável. Ele escolheu estudar o tema “trabalho escravo contemporâneo” em uma época em que, segundo conta, o próprio meio acadêmico não considerava mais a existência da prática. Para isso, buscou fontes primárias, registrou situações por meio de fotografias e percorreu diferentes realidades do Brasil. “Era por volta de dois mil e quatro. Falavam: ‘Ah! Trabalho na cana de açúcar é sazonal, não é escravidão’. Era difícil conseguir provar. Eu comecei, então, a entrevistar as pessoas. Fiquei três meses na Floresta Amazônica, conhecendo casos de escravidão, na prática. Fui para Coimbra e também tentei entender como funciona a escravidão na Europa. Depois, andei por vários lugares do Brasil, e ficou claro tudo isso nos depoimentos”. Da tese, foi publicado o livro “Trabalho Escravo Contemporâneo: a modernização da casa-grande e da senzala no Brasil”.

Miguel Benavides
” A falta de trabalho faz com que os cidadãos desempregados em busca de um serviço aceitem qualquer valor irrisório, e terminam caindo em mãos dos aliciadores.”

Garantias & Direitos

No Brasil, as leis que tratam sobre análogo à escravidão são a Constituição Federal de 1988 e o Código Penal, por meio do Artigo 149 (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940), alterado pela Lei nº 10.803, de 11 de dezembro de 2003, criadas para estabelecer as penalidades relativas ao crime e indicar as hipóteses em que se configura condição análoga à escravidão. Segundo reza o Artigo 149, tal condição pode ser identificada em situações de submissão do trabalhador a jornadas excessivas, trabalho forçado, más condições de trabalho, restrição do direito de ir e vir devido a dívidas contraídas com o empregador, posse de documentos e objetos e vigilância excessiva. Vale ressaltar que qualquer uma dessas condições, mesmo isoladas, configura trabalho análogo à escravidão.

A pena pela prática é reclusão de dois a oito anos e multa, além da pena correspondente à violência. A pena pode ser aumentada para mais 50% se o crime for cometido contra criança ou adolescente e acontecer por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

Assim, as fiscalizações do Ministério de Trabalho e Emprego miram em garantias oferecidas pelo empregador relacionadas a direitos fundamentais, como salário mínimo, jornada de trabalho máxima, repouso semanal remunerado, férias e décimo terceiro salário.

Além das leis citadas, existem normas complementares, como a Portaria nº 1.129/2017 do Ministério do Trabalho, que estabelece os procedimentos para fiscalização e combate ao trabalho escravo, e a Convenção 29 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que proíbe a escravidão, o trabalho forçado e a servidão por dívida. Esta última trata do trabalho forçado ou obrigatório e contém 33 artigos que estabelecem as normas internacionais sobre o tema. A convenção tem como objetivo abolir todas as formas de trabalho forçado ou obrigatório e garantir que os trabalhadores sejam livres para escolher o emprego que desejam.

Entre as normas estabelecidas na Convenção 29, estão a proibição de uso de trabalho forçado ou obrigatório como meio de coação política ou punição por expressão de opinião política ou discriminação racial.

Além disso, a convenção determina a obrigação dos países signatários de tomar medidas efetivas para combater o trabalho forçado e proteger as vítimas desse tipo de exploração. O documento é um importante instrumento internacional para combater o trabalho forçado ou obrigatório em todas as suas formas, além de garantir a dignidade e liberdade dos trabalhadores pelo mundo inteiro.
Segundo Miguel Benevides, advogado da ONG Cami, que atua nas áreas civil, criminal e previdenciária, a legislação brasileira desempenha um papel fundamental na proteção e defesa das vítimas de trabalho análogo à escravidão. “Essas medidas demonstram o compromisso do país em combater essa prática e garantir a dignidade e os direitos fundamentais de todos os trabalhadores”, reflete. “A gravidade da ofensa causada à dignidade do ser humano causa uma injusta lesão e repulsa à toda sociedade, de forma que o responsável de cometer o crime, deve arcar, além do pagamento de todas as verbas trabalhistas previstas em lei, poderá ainda ser condenado ao pagamento de indenização por dano moral.”

Denúncia e Investigação
Segundo a procuradora Andréa Tertuliano de Oliveira, do Ministério Público do Trabalho (MPT), também coordenadora do Núcleo de Combate ao Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas (NETP) da 2ª Região, na esfera trabalhista, quando ocorre o resgate de um trabalhador em condições análogas à escravidão, o contrato de trabalho é rescindido, independentemente de ter sido formalizado ou não.

Os empregadores são condenados ao pagamento das verbas rescisórias, que inclui salários integrais retroativos desde o início da prestação de serviços. Além disso, devem ser calculados os valores correspondentes a férias, décimo terceiro salário, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), contribuição previdenciária (INSS) e aviso prévio. “Esses valores são considerados imprescritíveis, ou seja, não estão sujeitos a prazos para cobrança”, observa a procuradora.

A quantia a ser paga pode ser bastante elevada, especialmente em casos em que o trabalhador tenha permanecido por longos períodos em condições precárias de trabalho. E, mesmo após o pagamento das verbas rescisórias, o empregador pode enfrentar ações judiciais por danos morais e individuais causados ao trabalhador.

Segundo Oliveira, o MPT toma conhecimento dos casos através de denúncias vindas de diversas formas, como Disk 100 e 180 e delegacias de polícia. Além disso, ela conta que há vários órgãos que coletam a denúncia através da internet, como o Ministério do Trabalho, o Ministério Público Federal e o próprio MPT. “A gente não tem como bater de porta em porta. São 40 mil casos só no município de São Paulo, envolvendo trabalhadores, normalmente bolivianos, paraguaios, na costura, por exemplo. Para isso, precisamos de uma denúncia bem estruturada para a gente poder se organizar para ir à diligência, dizendo endereço e o tipo de trabalho escravo, se é de costura, corte de cana de açúcar, plantio de cebola”.

Após receber a denúncia, o MPT coordena, junto a órgãos parceiros, uma diligência ao local, uma vez que é necessário fazer o flagrante para provar o fato ou verificar se a denúncia é falsa, o que pode acontecer. “Conforme o grau de perigo, a gente vai acompanhado pela Polícia Federal, fortemente armada, até para intimidar as pessoas e evitar um tiroteio ou briga”, explica.

A promotora relembrou que a decisão de utilizar armas na diligência partiu de um episódio em que quatro auditores fiscais foram assassinados no município de Unaí, Minas Gerais. “Aconteceu justamente porque eles iam com a cara e a coragem. Então agora, depois da morte infeliz desses colegas, a gente sempre vai acompanhado pela Polícia Federal ou Polícia Rodoviária Federal”.

Se a diligência no local comprovar a prática de trabalho análogo à escravidão, a vítima é imediatamente retirada do local e levada para um local de hospedagem, e permanece ali enquanto são realizadas as medidas jurídicas que reivindicam o pagamento das verbas rescisórias. “Tem que tirar o trabalhador de lá no primeiro momento. É uma atitude imediata para não expô-lo mais àquela condição degradante”, reforça.
Mas o fato de o resgate ter sido feito e o ato ilícito comprovado não garante que os envolvidos reconheçam a situação ilícita e assumam as obrigações trabalhistas, como explica Andréa Tertuliano de Oliveira. “Não é sempre que o envolvido fala: “Vou por a mão na consciência, na verdade fiz errado, vou pagar. Normalmente, ele contrata advogado e começa com um monte de meandros jurídicos e briga dali, briga daqui”.
Isso significa que há um longo caminho pela frente. Pode demorar bastante até que a condenação seja realizada e garanta o pagamento das verbas rescisórias e pagamento da “dor moral e individual do trabalhador”.

A princípio, a empresa ou a pessoa física que tem envolvimento com a prática é intimada para uma audiência administrativa, que tenta formalizar um termo de ajustamento de conduta. Não sendo aceito, é instaurada uma ação civil pública, que reivindica ao juiz a condenação dos envolvidos. “Muitas vezes também a gente entra com ações cautelares para resto de patrimônio, para que não haja frustração no pagamento, porque as pessoas podem desaparecer com o patrimônio: doam, dão para o filho, para a sogra, e quando a gente vai executar não tem mais patrimônio nenhum. Então essas ações cautelares também são nossa responsabilidade”, explica a promotora.

Por isso, enquanto aguarda essas deliberações da justiça, é necessário que a vítima receba as devidas assistências jurídica, psicológica e social, que consideram as condições em que foi encontrada, meios de reaproximação com a família e a reinserção social e no mundo do trabalho, como explica a promotora.

​Vale dizer que, além das consequências na esfera trabalhista, o empregador também é submetido a medidas administrativas. “Ele é convidado a assinar um termo de ajuste de conduta, para que não repita a prática, sob pena de multa se vier a descumprir. Na hipótese de não querer fazer isso de maneira voluntária, ele sofre uma ação civil pública. Então ele sofre uma percepção penal e pode vir até a ser preso. Como talvez a pena máxima não seja muito grande, é bem possível que ele possa cumprir em liberdade, com pagamento de indenização por cestas básicas, mas no pior dos cenários ele vai ser preso”, explica Oliveira.

No fronte: órgãos de combate em combate contínuo

Há vários órgãos envolvidos no combate ao trabalho análogo à escravidão, de forma colegiada. Inclusive, existe um fluxo de atendimento que foi definido para que não haja falhas no cuidado com o trabalhador resgatado e nem retrabalho ou sobreposições.

No âmbito do Ministério Público do Trabalho, o Núcleo de Combate ao Trabalho Análogo a Escravo e Tráfico de Pessoas tem desempenhado um papel estratégico. Por meio de resgates, investigações e ações judiciais, ele busca combater crimes de exploração de trabalhadores e garantir a justiça para as vítimas. Além disso, promove políticas públicas que visam a erradicação do trabalho escravo.

E para combater tais práticas, o Ministério do Trabalho e da Previdência, por exemplo, realiza fiscalizações contínuas, através da Secretaria de Inspeção do Trabalho. O órgão atua para regularizar os vínculos empregatícios dos trabalhadores e resgatar aqueles submetidos a situações análogas à escravidão.

A batalha contra o trabalho escravo contemporâneo também é travada junto a organizações não governamentais, movimentos sociais e outras entidades engajadas. Essas instituições desenvolvem projetos de conscientização, prevenção e assistência às vítimas. Além disso, elas pressionam por mudanças legislativas e políticas públicas mais efetivas no combate a essa prática.

O combate ao trabalho escravo contemporâneo requer uma abordagem multidisciplinar e o envolvimento de toda a sociedade. Nesse sentido, a imprensa e o jornalismo também têm papel importante na denúncia dessa prática, como reconhece a promotora Andréa Tertuliano de Oliveira. No entanto, ela alerta que a imprensa precisa atuar como parceira dos órgãos públicos, para que o furo jornalístico não seja mais importante do que as vítimas e a operação organizada para resgatá-la. “É importante agir no tempo certo, sem queimar as forças-tarefas, porque é um desperdício de dinheiro público, no final das contas, e mais um prejuízo ao trabalhador que, às vezes, não vai receber nada, por conta de uma divulgação precoce”, alerta.

Vítima de trabalho análogo à escravidão

LIBERDADE AOS 70

Dona Maria decidiu contar a sua história quantas vezes for preciso, para que seja tomada como símbolo da luta contra o trabalho análogo à escravidão no Brasil e sirva para a conscientização de outras mulheres para essa realidade. Às vésperas da publicação desta matéria, ela morreu enquanto dormia, ainda à espera de justiça.

Dona Maria (nome fictício para proteção da vítima) foi uma das 77 vítimas da exploração do trabalho doméstico resgatadas, desde 1995, pelo Ministério Público do Trabalho e pela Polícia Federal. O número 77 pertence ao universo de 61.459 pessoas submetidas ao trabalho análogo à escravidão no Brasil, desde então. De acordo com estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), mais de 6 milhões de brasileiros e brasileiras dedicam-se a serviços domésticos, e 92% desse total são mulheres – em sua maioria negras, de baixa escolaridade e oriundas de famílias de menor poder aquisitivo.

Nos últimos anos, graças à divulgação nos meios de comunicação e ao trabalho de muitos atores sociais e entidades envolvidos na casa, houve um aumento do número de denúncias relacionadas a mulheres idosas que atravessaram as várias fases das suas vidas servindo gerações e gerações de uma mesma família. E foi exatamente o que aconteceu com Dona Maria, cuja história é um exemplo de como a exploração do trabalho doméstico de meninas pobres e negras ainda é uma realidade no Brasil, e ainda há muito a ser denunciado e desvendado.

Durante 33 anos, ela enfrentou uma jornada de trabalho exaustiva, que ultrapassava 20 horas de trabalho diário, vivenciou condições degradantes, como restrição de locomoção, privação de chuveiro quente e de alimentação digna, humilhações, que incluíam xingamentos racistas, e quase desenvolveu cegueira, porque não teve acesso a tratamentos de saúde. Além disso, os patrões, que já não pagavam para a trabalhadora um salário pelos serviços prestados, tinham a posse dos seus documentos e retinham a sua aposentadoria.

Segundo a assistente social, Carla Aguilar, gerente da ONG Cami (Centro de Apoio e Pastoral do Imigrante), em situações como essas, é comum os patrões pedirem aos agentes de justiça, no momento do resgate, para que deixem a vítima continuar a viver com eles, sob a alegação de que é parte da família, mas a realidade vivenciada é bem diferente. “Essa pessoa se sentia parte da família, mas ela descobre que não era da família, quando ela se depara com tantas coisas ruins que aconteceram e, principalmente, no momento do resgate. Eles dizem que é como se fosse da família, mas ela nunca se sentou na mesa da família para comer. Ela é como se fosse da família, mas nunca teve a oportunidade de estudar. Então ela é como a família, mas não está na foto oficial da família nem no testamento”, questiona.

Dona Maria passou de uma infância difícil, em que pouco recebia cuidados maternos, para as mãos de empregadores que se aproveitavam das carências sociais e familiares que trazia para explorar a sua força de trabalho. “Minha lembrança de criança não foi muito legal. Minha mãe trabalhava em casa de família, só que ela ficava trabalhando durante o dia e à noite ela saía, então ela me deixava sozinha, trancada ou para fora. E eu não tinha essa coisa de ter uma casa, de ter alguém que fizesse uma comida para mim”, relatou.

Dona Maria contou que, às vezes, era acolhida e alimentada por uma senhora, proprietária da casa onde morava. “Quando minha mãe chegava ela ficava brava, porque ela dizia que eu não tinha que reclamar, eu tinha que ficar quietinha”.

A situação piorou quando a mãe de Dona Maria teve um outro filho, e, poucos anos, depois descobriu que tinha câncer de mama. Ela ficou um período internada e, quando morreu, deixou os dois filhos nas mãos de familiares. O irmão de Dona Maria foi levado por uma família, e ela por outra, com quem conviveu durante um tempo. Foi nessa época que ela conheceu uma senhora que, em troca de um prato de comida, a acolheu em casa e a ajudou a sobreviver. “Foi aí que comecei a trabalhar”, disse Dona Maria. “Eu fazia faxina, lavava roupa, cuidava de criança, de idoso, de tudo, mas sempre foi trabalho duro e mal remunerado”.

Depois que foi demitida por uma outra família, para a qual serviu por duas gerações, foi trabalhar com a família de classe alta, no bairro de Pinheiros, em São Paulo, com a qual permaneceu durante os últimos 33 anos, e das mãos da qual foi resgatada por agentes da justiça, após uma denúncia. Mas o sofrimento não acabou de pronto para Dona Maria, os primeiros dias de liberdade foram difíceis.

Segundo Aguilar, é comum, nos primeiros dias após o resgate, as vítimas sofrerem e sentirem saudades da família, porque muitas delas passaram a maior parte da vida junto a essas pessoas, e quase não têm outras referências. “A sociedade não pode julgá-las por isso. A gente tem que entender que, ao mesmo tempo que existiram muitos momentos ruins, também tiveram momentos bons”, pontua.

Com Dona Maria não foi diferente. Apesar de todo sofrimento ao qual foi submetida, o resgate foi um baque e deixou uma lacuna em seus dias. “No começo para mim foi muito difícil. Eu chorava de noite e queria voltar, de todo jeito. Ficava sentada pensando no que eu iria fazer, sem trabalhar, pensando nas crianças, na filha e na neta da patroa. Mas, graças a Deus, passei a ter assistência da psicóloga, comecei a fazer um tratamento. Ela é um amor para mim. Hoje estou bem. Eu nunca soube o que foi ter um Ano Novo, uma Páscoa. Primeira vez na vida que ganhei um ovo de Páscoa. Foi a primeira vez que tive um Natal maravilhoso. Isso para mim significa muito, mudou a minha vida da noite para o dia. Passei a ter remédio, comida”, comemorou.

Dona Maria, em sua saga, ficou quase cega. Passou por uma avaliação para uma cirurgia de catarata, com a ajuda da ONG Cami, que a apoiou no pós-resgate, providenciando um lugar para ficar provisoriamente.

Uma outra vítima, também acompanhada atualmente pela ONG, viveu situações semelhantes de precariedade no trabalho, exploração e maus tratos. Dona Ana (nome fictício para proteção da vítima), hoje com 70 anos, depois de uma vida que a deixou órfã, tendo que viver entre um orfanato e casas de família, sem ser, muitas vezes, remunerada, permaneceu durante 33 anos em situação análoga à escravidão. Uma família de classe média explorou os seus serviços sem fornecer
o salário devido. Além disso, a falta de cuidados com a sua saúde a levou a perder todos os seus dentes, como uma solução menos custosa para a família.

Para a pesquisadora Antonia Aparecida Quintão, a persistência de práticas abusivas contra meninas pobres e negras no Brasil, como aconteceu com Dona Maria, tem a ver com a presença do conservadorismo e a resistência em cumprir a lei, por parte da elite.

“Essas práticas permanecem porque estão arraigadas nessa elite patriarcal, colonial e principalmente

racista. E uma das marcas da elite brasileira é que ela é branca, racista, não quer cumprir a lei. Quem tem dinheiro não quer cumprir a lei, porque acha que não tem que cumprir, tem que ter privilégios”, denúncia. “A presença de privilégios e a crença de que as leis não se aplicam a eles perpetuam injustiças e afrontam a construção de uma sociedade mais justa.” Além disso, Quintão aponta as desigualdades sociais e a falta de conhecimento acerca dos direitos por parte da população como um dos grandes obstáculos para o pleno exercício da cidadania. “O professor Milton Santos dizia que uma das tragédias no Brasil é que aqui tem poucos cidadãos, porque a sociedade é uma sociedade de extremos. De um lado, temos aqueles que são pobres demais e que não podem ser cidadãos, porque para você ser cidadão tem que conhecer seus direitos para ir atrás deles. O pessoal fala que o brasileiro é acomodado. Mas como é que você vai atrás de um direito que você nem sabe que existe, concorda?”. Por isso, aponta a conscientização sobre os direitos e o empoderamento dos cidadãos como elementos fundamentais para que haja uma busca efetiva por justiça.

Denuncie

Disque 100

Caso presencie ou fique sabendo de algum caso de trabalho análogo à escravidão, denuncie.  O Disque 100 é um serviço gratuito de atendimento telefônico que recebe denúncias de violações de direitos humanos, incluindo trabalho escravo e trabalho análogo a escravidão.

Você pode ligar de qualquer lugar do Brasil, 24 horas por dia.

Conheça a história de Dona Maria em detalhes

Ouça o podcast Filosofia Nômade, produzido pela FAPCOM

Clique e assista ao vídeo “Dona Maria – Direitos Violados”, uma experiência em realidade virtual, produzida por pesquisadores da USP e da FAPCOM

TV Digital no Brasil

Transmissão híbrida na TV aberta brasileira
O DTV Play e as suas potencialidades

                                                                                                               Foto: SET

Deisy Fernanda Feitosa

Experiência personalizada de recepção de conteúdos em ambiente de TV aberta. Esse foi o assunto mais falado do 30.º Congresso de Tecnologia do SET e da SET Expo 2018. Quem visitou o estande da empresa Mirakulo na feira pôde fazer uma degustação da tecnologia DTV Play, o mais recente aprimoramento do Sistema Brasileiro de Televisão Digital, ainda em fase de implementação pelo Fórum do Sistema Brasileiro de TV Digital (Fórum SBTVD). DTV Play é o nome comercial do novo perfil de receptores Ginga, identificado na Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) como perfil D. Seu principal objetivo é trazer maior integração entre broadcast e broadband, integrando também dispositivos pessoais durante a experiência do usuário.

O protótipo, desenvolvido pela Mirakulo em parceria com a Globo e a fabricante TCL, demonstrava alguns casos de uso do DTV Play no sistema operacional do receptor de televisão TCL, que conseguia fazer uma aplicação Ginga ativar conteúdos do Globoplay. Ou seja, para que o DTV Play pudesse ser testado, foi feita uma versão no Globoplay integrada ao firmeware desse aparelho de TV, de forma que uma aplicação Ginga fosse conectada ao aplicativo embarcado. Dessa forma, a interface oferecia ao telespectador, via pop-up, sugestões de conteúdos disponíveis no Globoplay e a opção de participar de enquetes e de assistir a programas em qualidade 4K.

                                                                                             Foto: SET

De acordo com David Brito Jr., engenheiro da Mirakulo, o projeto começou a ser pensado há quase um ano, mas é uma solução que vem sendo discutida há alguns anos por emissoras, empresas e universidades do mundo inteiro; inclusive, com recomendação da União Internacional de Telecomunicações, para que fosse pensada a integração das transmissões broadcast e broadband. Tais discussões teriam originado a HbbTV (Hybrid Broadcast Broadband TV), a HybridCast e o ATSC 3.0, versão mais recente do sistema americano de TV digital. “Nós fizemos uma proposta ao Fórum SBTVD para desenvolver esse novo perfil Ginga, o DTV Play. Isto é, em conjunto com a radiodifusão, levamos uma proposição de como seria esse novo padrão, e a proposta foi bastante aceita pela academia e por todos os parceiros do Fórum SBTVD”, relata Brito Jr. No entanto, Marcelo Moreno, engenheiro, pesquisador e consultor do Fórum SBTVD, ressalta que a proposição trazida pela Mirakulo foi apenas uma parte das discussões: “Tivemos contribuições de diversos outros setores e em diversos aspectos não endereçados inicialmente pela proposta da Mirakulo”, observa. Ele lembra, ainda, que o Ginga, com a especificação do Perfil C, já fora reconhecido pela União Internacional de Telecomunicações como um sistema IBB (broadcast-broadband).

Segundo David Brito Jr., apesar de o desenvolvimento do protótipo apresentado ter sido realizado somente em conjunto com a TV Globo, as  demais emissoras de radiodifusão terrestre poderão lançar mão da tecnologia, no momento em que for integrada ao SBTVD. O engenheiro nos contou mais detalhes dos testes. “Estamos experimentando uma solução para votação no Big Brother Brasil, na qual o usuário é convidado a participar do processo via Globoplay. Assim, a gente consegue levar uma experiência muito mais rica e mais transparente. Além disso, no momento em que aperta o ‘ok’ para votar, já acessamos os dados daquele usuário e indicamos qual é o seu login, sem que sejam necessárias aquelas interações tão difíceis pelo controle remoto ou inserir senha. Basta ele escolher a opção que quer na votação, apertar ‘ok’ e pronto.”

Outro exemplo dado por Britto Jr. é que, ao invés de o usuário ter que esperar uma semana para acompanhar o próximo episódio de sua série favorita na TV aberta, com o DTV Play, todo o conteúdo da série estará disponível imediatamente no Globoplay, e, assim como nos demais OTT (Over The Top), ele poderá assistir a uma maratona.

O DTV Play também permite, como dito anteriormente, que o conteúdo seja visto em diferentes formatos de imagem.  “Se o telespectador está vendo um conteúdo broadcast disponível em 4K na internet (broadband), pode aparecer para ele a pergunta: Você quer assistir a este conteúdo em 4K? Basta apertar “ok” e ele será conduzido do mundo broadcast para o mundo broadband, onde assistirá ao mesmo conteúdo com qualidade superior”, explica o engenheiro.

Segundo Raymundo Barros, diretor de Tecnologia da Rede Globo, a base tecnológica de ponta pensada por engenheiros do SBTVD é o que permite essa e outras evoluções que ainda acontecerão no sistema. “O nosso padrão é fantástico, tem muito espaço de evolução, e por isso foi razoavelmente simples construir a especificidade para esse novo framework de dados que integra o broadcast com o broadband”, comemora.

Considerando que a tecnologia evolui a passos largos, o professor Almir Almas, do Departamento de Televisão e Rádio (CTR), da Escola de Comunicação e Artes da Unidade de São Paulo, endossa a colocação, ao lembrar que, desde o seu desenvolvimento inicial, já foram previstos aprimoramentos na arquitetura do ISDB-Tb (sistema nipo-brasileiro). Para Almas, com o DTV Play, o ISDB-Tb tem grande chance de se destacar, mais uma vez, em cenário mundial, por ter uma arquitetura original cuja estrutura permite a integração entre broadcast e broadband, sem que seja necessário um novo switch off devido a essa evolução. “Creio que essa é uma grande chance de evolução e de busca por novas soluções tecnológicas possíveis. E, claro, entendo que se houver uma evolução no ISDB-Tb todos os países usuários desse sistema também se beneficiarão dos aprimoramentos”, analisa.

Sobre a iniciativa da Globo em testar o DTV Play

O Globo Play foi lançado em 2015 como serviço de catchup da TV Globo
para smartphones. O sucesso da plataforma fez com que atingisse 20 milhões de usuários únicos por mês, segundo dados trazidos por Raymundo Barros, diretor de Tecnologia da Rede Globo. A grande descoberta dessa experiência, segundo o diretor, foi que “o televisor é um dos mais importantes devices para conteúdos sob demanda”, já que os pacotes de dados de internet no Brasil ainda são muito restritos, e isso faz com que as pessoas tenham acesso limitado aos conteúdos online.

Sendo assim, a Globo se deparou com um importante problema, segundo o executivo: para acompanhar marca, modelo e firmeware dos fabricantes de televisão, foi necessário construir mais de mil versões do Globoplay. Ou seja, só os sistemas operacionais Android e IOS não bastavam. Além disso, os fabricantes lançam novas atividades a cada seis meses, o que só tornava mais complexa a experiência do GloboPlay: “o que tínhamos era um ambiente desafiador do ponto de vista tecnológico”, avalia.

Segundo ele, tudo isso indicava a hora de se dar um passo para um novo cenário, ou seja, reconhecer os aparelhos de televisão como plataformas: “Os televisores estão se tornando plataformas, e reconhecê-los dessa forma significa ampliar o relacionamento com os fabricantes”, defende. E o DTV Play seria, então, o lugar desse novo cenário. A Globo Play passa, assim, a ser executada de forma nativa, dentro do televisor, de modo integrado à TV aberta e à transmissão broadband, originando uma experiência híbrida de transmissão  (hybridcast). Isso permite ao telespectador, por exemplo, assistir a uma minissérie em mais de um formato de vídeo, através do canal broadband, e depois voltar para o televisor. No entanto, o executivo da Globo lembra que os fabricantes de televisores continuarão a ter uma plataforma própria, por se tratar de um ideal de competitividade inevitável: “Temos que respeitar a regra do jogo. Temos que nos adequar a cada plataforma. Estamos discutindo com todos os fabricantes de televisores. Vamos evoluir sobre a maneira como o Globoplay está em cada televisor”, explica.

                                                                                                Foto: SET

Na última versão da Revista SET, publiquei um artigo em que especialistas, durante a NAB 2018, chegaram a afirmar que a nova versão do sistema de TV digital americano, o ATSC 3.0, faz dele o melhor padrão existente hoje no mundo, e aquele com maior grau de inovação. No entanto, o engenheiro e pesquisador Gunnar Bedicks Jr., diretor da Seja Digital, destaca que as  novas tecnologias para a camada física que foram incorporadas ao ATSC 3.0 “propagadas como inovadoras”, nada mais são do que as mesmas já adotadas pelo Brasil, para o ISDB-T, em 2006:  modulação OFDM, flexibilidade e mobilidade, Single Frequency Network (SFN) e EWBS.

                                                                                               Foto: SET

Ele observa que os desenvolvedores do ATSC concordaram que as técnicas utilizadas pelo DVB-T/T2 e pelo ISDB-T: “são as mais adequadas para a transmissão/recepção terrestre”. No entanto, Bedicks reconhece que, do ponto de vista da camada de transporte, há inovação, e é o que possibilita a transmissão de conteúdos IP combinados com conteúdos de áudio e vídeo comprimidos em protocolos MPEG. “E essa inovação pode ser incorporada ao ISDB-T sem a necessidade de perdermos o legado dos receptores de TV ISDB-T. Já do ponto de vista da transmissão, não haveria a necessidade de se substituir os transmissores de TV ISDB-T, mas apenas a de adequar o multiplexador para suportar as novas tecnologias propostas. Assim, não vejo no futuro a substituição do ISDB-T pelo ATSC 3.0, mas uma possível adequação da camada de transporte  atual para suportar as inovações”, reflete.

Em relação ao DTV Play, cujo nome definitivo ainda está por ser confirmado,
o engenheiro Marcelo Moreno explica que nada mais é do que o novo perfil de receptores Ginga, ou seja, o perfil D, que é uma evolução tanto pelo lado do NCL/Lua, quanto referente à incorporação do HTML5. “Nas normas, temos agora o Ginga-NCL, o Ginga-HTML5 e mais um novo componente no Ginga Common Core, denominado Ginga-CC Webservices”, detalha.

Bedicks e Moreno lembram, no entanto, que a integração broadcast-broadband só acontece quando a TV está conectada à internet banda-larga. Isto é, sem uma smart TV não haverá “broadband” e, consequentemente, não será possível acessar o serviço DTV Play. Além disso, só haverá a necessidade de trocar de aparelhos de TV ou utilizar conversores se quisermos receber um novo conteúdo transmitido através de novas tecnologias como 4K, por exemplo.

E é isso, segundo Gunnar, que permite que a transição para o DTV Play ocorra de forma seamless, isto é, sem a necessidade de switch off do digital atual. No caso do ATSC 3.0, como os receptores de TV atuais não são compatíveis na camada física (RF) com o novo sistema ATSC3.0, será necessário, sim, fazer um novo switch off.

O professor Almir Almas, a seu turno, reconhece que houve uma importante evolução do sistema nos últimos anos, especialmente porque os desenvolvedores
passaram a se dedicar à correção de falhas apontadas, inclusive, por pesquisas brasileiras. “Eles se dedicaram a recuperar o que era deficitário no sistema em relação aos outros existentes. E as pesquisas brasileiras realizadas na primeira metade dos anos 2000, quando da definição do padrão brasileiro de TV digital, foram fundamentais para essa avaliação, na medida em que realizaram testes comparativos dos três sistemas existentes e em uso, na época, para medi-los e avaliá-los. Essas pesquisas, além de terem sido importantíssimas para que o Brasil definisse o seu sistema, fizeram com que os outros sistemas pudessem se reavaliar”, aponta.

DTV Play ou Ginga?

Para Raymundo Barros, por se tratar de um modelo de integração broadband e broadcast que provê ao usuário final uma experiência digital em que assistir TV aberta passa a ser uma experiência “logada”, a solução não deve ser chamada de Ginga. “Não vamos chamar de Ginga, mas de um novo framework de dados. Isso não tem nada a ver com o conceito de interatividade concebido em meados dos anos 2000”, esclarece.

Já Marcelo Moreno não vê a evolução como disruptiva: “O Ginga já tinha muito da integração broadcast-broadband. Há, sim, novas funcionalidades em todo o middleware que tornarão mais fácil essa experiência logada”, defende. “Para o público em geral, esse conjunto de atualizações será disseminado com o nome de DTV Play, mas tratando-se, de fato, de uma evolução do Ginga. É uma evolução do selo DTVi que quase ninguém entende de fato”, finaliza

O professor Almir Almas, por sua vez, acredita que o DTV Play pode ser um caminho para a consolidação da interatividade no Brasil, e para a recuperação do que considera um ‘prejuízo histórico’: “A interatividade por broadcast no Brasil acabou sofrendo bastante e não conseguiu se consolidar, muito por falta de aposta das grandes emissoras e dos principais players da televisão digital terrestre”, reflete.

Mas a forma como a interatividade pode ser explorada na TV aberta é um tema  que ainda divide opiniões. Para Gunnar Bedicks, interatividade está ligada a conteúdos sob demanda: “Interatividade na TV significa Netflix, Amazon TV, Apple TV, Now TV. Vi no congresso da IBC2018, realizado em Amsterdã, uma enormidade de empresas apresentarem essas tecnologias. Só a Netflix já tem 140 milhões de assinantes no mundo. O conteúdo é o “killer aplication”, e como falou o CTO da BBC: ‘Conteúdo é o rei, mas talento é o rei dos reis'”, ilustra. “As pessoas interagem com a TV em busca de conteúdos que contem histórias interessantes e as envolvam”, complementa.

                                                                         Foto: Fernando Moura

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                                                                                        Foto: SET

 

Para Almir Almas, entretanto, interatividade vai além da escolha de conteúdos proporcionados pelos aplicativos OTT (Over The Top) das emissoras , mas trata-se de uma experiência circular e bidirecional de aprendizagem contínua entre sistemas e audiências. “Considero a interatividade como a relação entre o usuário/telespectador e o sistema; com o sistema sendo modificado pelo telespectador e modificando-o também. Nesse sentido, não concordo com que as pessoas se dão por satisfeitas só com isso. Havendo banda larga, essa integração pode ajudar a interatividade, em especial, por termos um canal de retorno assegurado. E, dentro disso, ainda temos o Ginga, que com suas evoluções possibilitará, no meu entender, interatividade nessa convergência broadcasting/broadband”, analisa.

Os próximos passos do DTV Play

O DTV Play, considerado como um novo framework do SBTVD, está em fase de consulta pública na ABNT. Logo que receber todas as contribuições, fará parte das normas do Sistema Brasileiro de TV Digital o que permitirá aos fabricantes implementá-lo de forma voluntária nas suas novas linhas de televisores.

Isso significa que a tecnologia poderá ser adotada para serviços de OTT de qualquer emissora de TV aberta. No caso do Globo Play, com a tecnologia DTV Player, deixará de ser um serviço catchup para se tornar uma plataforma OTT do grupo Globo, que oferecerá para o público conteúdos originais produzidos pela Globo, com conteúdos licenciados e séries produzidas pela GloboSat, de acordo com o engenheiro Raimundo Barros.

Modelo de negócios

Conforme David Britto Jr., da Mirakulo, com a integração do canal de TV aberta com o Globo Play, a emissora passa a conhecer mais a fundo o usuário da TV, seus gostos e seus costumes. Com isso, pode oferecer conteúdos personalizados: “Nós podemos também explorar maiores capacidades da TV, por exemplo, oferecer conteúdo 4K via streaming no lugar do sinal full HD recebido pela antena”, explica.

Ele acrescenta que será um serviço gratuito para o telespectador, o que não impede que, eventualmente, sejam oferecidos conteúdos só para assinantes. “Ele vai ser convidado a ser assinante ou vai receber um conteúdo que é só degustação”, reforça. Já para a emissora, o engenheiro explica que a ideia é que seja também uma fonte de renda e que permita a oferta de mais conteúdos e de acordos comerciais. “Eu acho que isso está trazendo a experiência personalizada da internet para a TV aberta, de você assistir o que quer, na hora que quiser”, observa.

A propaganda personalizada ou endereçada, um dos pontos focais do ATSC 3.0, também se torna possível com o DTV Play. E isso tem aberto um importante diálogo com as agências de publicidade brasileiras, conforme Britto Jr. “Existem novos modelos de negócio que não existiam antes, e essa tecnologia passa a ser mais interessante tanto para emissoras de TV quanto para agências de publicidade. Nós demonstramos ferramentas do DTV Play em alguns eventos e tivemos uma resposta bastante positiva por parte de profissionais de agências de marketing e publicidade. Quando viram, passaram a ter várias ideias de como poderiam trazer novos negócios e novas formas de trazer publicidade”, conta.

“A TV continua viva como sempre”, mas…

O engenheiro Gunnar Bedicks observa em sua fala que, definitivamente, “morte da TV” é uma previsão fadada ao fracasso, pois as pesquisas e a realidade em ambiente de convergência comprovam uma direção contrária a essa afirmação. “Escutei, em uma palestra do IBC2018, o CEO da Youview dizer que a audiência da TV terrestre na Inglaterra aumentou. A TV continua viva como sempre, o que está mudando é a forma como o conteúdo chega até a TV, e nesse quesito cada país, cada região, cada cidade tem suas particularidades. O que importa é conteúdo interessante, e é isso que as pessoas estão buscando. Não importa onde esteja: na TV aberta, na TV por assinatura ou na internet. ISDB-T, DVB-T, ATSC, IP, são apenas camadas físicas que transportam o conteúdo. Se o conteúdo não for interessante para o telespectador, não existe tecnologia que possa trazer audiência”, reflete.

A partir dessa afirmação, podemos dizer que o que vemos é uma TV mais viva, com espaços mais plurais e propícios, não apenas para diferentes formatos de entrega de conteúdos, mas para diferentes formas de contar histórias. O que vemos é um território transmídia que ganha força e exige dos radiodifusores um olhar cada vez mais integrado, plural, qualificado, segmentado e colaborativo. Esse é o lugar da criatividade, de se experimentarem inesgotáveis formas de interatividade e de se explorarem diferentes saberes. Posta em nossa mesa a tecnologia, o momento agora é de olharmos para o rei conteúdo, talento, e de atender ao imperador chamado (tele)espectador, interator. Não é mais sobre sermos vistos, observados, mas sobre olharmos para a TV de forma mais aberta do que nunca, observá-la e, principalmente, escolhê-la. O ato de zapear, em nossos dias, dá lugar ao ato de navegar, tornando-nos navegadores de um mar de conteúdos que é ampliado a cada dia. E ganha quem raptar não apenas o nosso olhar, mas, sim, nossas preferências, gostos e exigências.

* Artigo extraído da Revista da SET, São Paulo, p. 42 – 52, ANO XXVI – Nº 181 – NOV/DEZ 2018

Disponível em: http://www.set.org.br/news-revista-da-set/revista/transmissao-hibrida-na-tv-aberta-brasileira-o-dtv-play-e-as-suas-potencialidades/

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Artigos de Deisy Feitosa

Deisy Fernanda Feitosa, jornalista e pesquisadora do Observatório Brasileiro de Televisão Digital e Convergência Tecnológica – CTR/ECA/USP; e pós-doutoranda do Núcleo Diversitas – FFLCH-USP.